segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Capítulo 1

"Um atordoante cheiro de velas escorria por entre rosas e begônias que se amontoavam em ramalhetes. Em uma das mãos eu carregava flores que a úmida manhã de janeiro murchara, enquanto puxavam-me com força pela outra, pois talvez eu não quisesse caminhar. Perdida entre pernas, mesmo na ponta dos pés era impossível ver além dos cotovelos dos que estavam a minha frente. Eu acompanhava meus próprios passos num desconhecido tapete, e quando isso me cansava, erguia a cabeça e buscava entre a multidão vislumbrar o céu, onde o sol oferecia tímidos seus primeiros raios. Vestidos escuros cascateavam nos tornozelos das mulheres, enquanto do alto vinha um burburinho que soluçava ao som de violinos chorosos. Preferia não olhar para os lados. Estátuas de anjos com seus olhos fixos em mim, fotos amareladas, letras douradas, flores, pavios queimando incessantes. Cruzes e mais cruzes.
Quero ir para casa, gritei. Ninguém respondeu. Porque estamos aqui, mamãe, papai? Novamente veio o silencio. Apertei a mão que me segurava, me encolhi toda e enchi o rosto de lágrimas. Estava com muito medo e não fazia idéia do que vinha acontecendo. A música cessou e um homem ergueu-me em seus braços. Era meu pai e eu o abracei rindo, enquanto me agarrava ao seu pescoço. Ele nem sequer se mexeu. Não falou, não sorriu. Apenas caminhou comigo até uma grande mesa, onde rodeado de adornos havia um leito. Sobre ele, minha mãe debruçada estava chorando. Tinha o rosto ardendo de tão vermelho, e seus olhos estavam fundos como duas órbitas vazias. Esgueirei-me para ver o que lá havia, e perguntei numa inocência avassaladora:
-Pai, porque Líria está dormindo aí?
Ele continuou mudo.
-Vamos pai! Vamos pegar a Líria e voltar para casa! – insisti.
Ele aninhou minhas mãos em seu peito e chorou. Foi tudo que conseguiu forças para fazer. Ainda assim eu não compreendia absolutamente nada. Soltei-me daquele aconchego e corri até a mesa. Toquei o rosto pálido de Líria, acariciei-lhe os cabelos. Como ela era linda! Corava as bochechas quando brincávamos juntas, puxava minha saia e dizia – brinca comigo Mara! – e riamos as duas na nossa alegria.
-Líria, acorda! Aposto que mamãe fez bolo de chocolate pra gente! – eu disse, fazendo-lhe cócegas.
Mas ela continuou imóvel.
-Ela não vai acordar Mara. – balbuciou rouca minha mãe.
-Porque não, mamãe? – e encarei-a boquiaberta.
-Porque ela... – minha mãe não conseguiu terminar a frase. Colocou-se em prantos, afundou a cabeça no corpinho frágil de Líria e gritou. Gritou como eu nunca antes tinha visto-a gritar. Isso me assustou. De alguma maneira eu precisava ajudá-la, mesmo sem entender ao certo o porque.
Abri os braços e abracei-a. Ela se agachou retribuindo, e pude sentir seu rosto encharcado pulsando ao lado do meu. Continuei ainda, como qualquer criança faria:
-Mamãe, Líria não vai mesmo acordar?
Mal terminei a frase e senti arder em mim um tapa. Um tapa com todas as forças que até então minha mãe usara para se lamentar. Um tapa na minha ingenuidade.
-Menina inconveniente! – esgoelou ela cuspindo saliva – Quisera eu que fosse você aí em vez de Líria. – e fuzilou-me com os olhos.
Senti uma pontada no peito. Claro que seria incapaz de entendê-la, mas independente da minha incapacidade, estava diante de algo que soava amedrontador. Abaixei a cabeça e tive lágrimas para deixar escorrerem quentes e sinceras.
Eu só tinha sete anos. Minha irmã menor estava morta. E minha mãe estava ficando louca."


para MARA.

Um comentário:

Anônimo disse...

adorei seu blog, e este post tbm, foi vc qm fez ou tirou de algm lugar?
beijos :*