segunda-feira, 26 de julho de 2010

Judith - final

"[...]Acordei num leito de hospital. Minhas feridas estavam limpas e cobertas com gazes, e uma bolsa de sangue pendia no suporte, cuja agulha estava fincada em meu braço. Levei alguns dias para me recompor e receber alta, tempo em que meus pensamentos mantiveram-se completamente desconexos. Em uma das madrugadas tive um delírio e precisei de calmantes. No entanto depois disso, tentei ao máximo me reerguer.

A ajuda viera de uma velha amiga da família que morava na cidadezinha próxima. Era uma senhora já viúva, dona de uma chácara nos arredores; posso lembrar-me de seu rosto quando era mais jovem. Costumávamos - meu pai, minha mãe e eu – visita-la sempre para ter o desjejum e fazer-lhe companhia. Assim descobri minha paixão pela musica, ao ouvir as suas mãos miúdas tocarem allegretos que combinavam com o nascer do sol. Fora minha tutora de piano por muitos anos, até que meu desempenho despertou o interesse de um professor da vila e meus pais preferiram o lecionar de alguém mais experiente. Já fazia algum tempo que o contato tornara-se escasso, e agradeci muito pelo afeto não ter sido levado pelo tempo. Ela foi como uma mãe nos dias em que passei internada. Permanecia longas horas na cadeira de visitas ao meu lado, mesmo que eu insistisse que não queria conversar com ninguém. Trouxe-me biscoitos amanteigados e suco de melão de sua própria horta. Talvez isso tenha me ajudado a melhorar.

Como a cidade fosse muito pequena, achou melhor não fazer barulho em relação ao assassinato, e eu concordei com essa decisão. O padre local realizou os ritos do velório e ela encarregou-se de sepultar meu pai ao lado de minha mãe. Eu não tive vontade de comparecer em nenhum momento. As imagens eram demasiado perturbadoras para que eu me sentisse capaz de suportar a situação. Quando consegui centrar um pouco meus pensamentos, conclui que nada me prendia mais àquele lugar. Sempre guardaria todas as minhas memórias, principalmente as da infância, carregadas de ternura e de paz. Mas também as lembranças das ultimas semanas, exageradamente pesadas. Vendi a fazenda e os animais no mesmo mês. Com parte do dinheiro comprei um flat no interior paulista, uma das maiores loucuras que eu poderia fazer. No fundo, eu não tinha ninguém em lugar algum.

Certa vez um renomado pianista tirava férias no campo e apreciara meu desempenho em um recital. Deu-me seu cartão, disse que eu seria muito bem vinda se quisesse tocar com ele. Era o momento, seria impossível recuar. Eu contei-lhe da morte de meu pai, e ele concordou em auxiliar-me a encontrar um trabalho na área, ressaltando inclusive que havia ótimas faculdades de música na região. Não pensei duas vezes. Mobiliei meu novo lar e transportei apenas meu piano, recheado de apego emocional. Seria o suficiente para recordar a casa onde nasci.

Quando senti que era hora de partir, minhas feridas já formavam grossas cascas, e as do rosto eram quase imperceptíveis. Meus pertences cabiam numa pequena mala de couro desgastada pelo tempo que a senhora me deu de presente. Agradeci muito toda a ajuda e o carinho, e prometi que jamais esqueceria o que ela fizera por mim. Não o bastante, ela me entregou uma foto cujo papel estava amarelado e sujo.

-Tenho duas cópias, fique com esta. Seus pais gostavam de vir aqui, quando meu marido ainda era vivo e a casa era cheia de alegria e sons. – e sorriu sincera, cavando marcas nos cantos dos olhos.

-Talvez você queira vir morar comigo... Também não há nada que te prenda aqui. – eu disse, sem ter certeza das minhas palavras.

-Obrigada, mas gosto muito deste lugar. Vivi toda a vida aqui, e jamais me imaginei terminando a vida longe de tudo que construí. – ela respondeu, afundando as mãos no avental preso em frente à saia. – Mas você deve ir. Teu jeito de tocar te levará muito longe, eu sei disso. Não deixe que nada te impeça de continuar.

Ela sabia que não era um conselho fácil de ser seguido. Nunca questionara sobre o que ocorrera naquela noite, e tampouco o faria. Sua sensatez visivelmente a impedia de invadir-me assim. Porém, chego a acreditar que ela sabia o que estava reservado a mim não muito tempo depois.

-Então está bem, tenho que ir agora. Não tenho palavras para agradecê-la. – e fui ao seu encontro, demorando-me num abraço.

Na foto, meu pai me tinha nos ombros segurando-me com uma mão, enquanto a outra enlaçava a cintura de minha mãe. Ao lado desta, a boa senhora e seu marido. Todos sorriam. Todos se esforçavam para petrificar aquela felicidade que transbordava. Deixei algumas lágrimas fluírem e depois as enxuguei com o antebraço. Para trás ficaram os olhos verde água da senhora. Segui rumo ao cemitério.

No caminho, comprei um buquê de lírios brancos. Fazia um dia de calor, como era de costume, e o sol parecia estar de bom humor. Assim despedi-me de meus pais. As flores destacavam em contraste com o mármore das lápides, e eu chorei mais uma vez. A leve brisa balançou as pétalas, fez um adocicado perfume atingir-me as narinas. Eu sorri. Levantei a mala nos braços e caminhei ao ponto de ônibus. Mudei-me para Campinas.

*

Comecei a trabalhar com o pianista e consegui uma vaga para o curso de música em uma renomada universidade. Três meses depois do ocorrido, a pele do meu rosto não dava sinais do meu passado, e eu realmente acreditava que iria recomeçar por completo. Mas o abismo mais uma vez surgiu sob meus pés de maneira egoísta:

Eu estava grávida.

Carregava o fruto de uma dor imensurável em mim, e a decisão de deixá-lo nascer era demasiado severa. Não tive muito poder de escolha. Não quis impor minha vontade e interromper o curso da vida. Uma criança arruinaria minha vida naquele momento, mas suportaria eu a dor de um dia ter impedido-a de nascer? Os sofrimentos me vinham com uma rispidez impressionante. Eu sentia meu peito se corroer de dor. E só não desisti porque sabia que meus pais se entristeceriam em ver a única filha desistir.

Nasceu uma menina. Fantasmagoricamente carregada das feições grosseiras daquele homem. Uma menina a qual dei o único nome que lhe convinha: Mara. Ríspida, severa, amarga. Mas Mara não era nada disso. Era doce, tenra. Mas Mara seria sempre, quisesse eu ou não, a minha amargura.

Um comentário:

Anônimo disse...

Réeeeeeeu! história triste, mas mto bem escrita! Parabéns!!

Dani