segunda-feira, 26 de julho de 2010

Judith - parte 3

"[...]Pouco sei do que ocorreu em seguida. Meus lábios estavam secos, pretendendo esfarelar-se feito papel a qualquer momento. A água salgada que escorria dos meus olhos secava-me as bochechas e encobria-me a vista com uma densa neblina. E a cabeça girava, latejava, pretendia estourar sem permissão. Não mais que alguns segundos depois de restarem apenas as marcas e os arranhões daquele estranho em mim, um ensurdecedor disparo encheu o ambiente, e um riso obsessivo encobriu qualquer agonia.

Foi a única vez em que desejei não ter nascido numa fazenda no interior de Minas Gerais, cujas noites exalavam o aroma de capim úmido misturado num silêncio desigual. A cidadezinha mais próxima ficava à meia hora dali, caminhando a passos largos e ritmados – trajeto que meu pai percorria frequentemente comigo nas costas e com uma enorme sacola pendurada em um dos ombros. Levava o queijo coalho que minha mãe deixava descansando em formas na cozinha, e eu sempre questionava quando poderia ajudá-la com o trabalho. E trazia as especiarias que não tínhamos sempre: os temperos, o arroz, o açúcar. Às vezes tecidos, outras, mais um pardal de bico colorido para nossa coleção. Mas sempre escolhia com precisão um vinho ou um chocolate, e alguns botões de flores que não cresciam em nosso jardim. Voltávamos ao entardecer, para encontrar a casa cheirando ensopado de galinha e pão fresco. E esse contexto preenchia-me de alegria, enquanto ocupava-me em estender o ramalhete de lírios à minha mãe. Ela sorria e meu pai beijava-a na testa carinhosamente.

Eram lembranças que vinham sempre. Mas já fazia muito tempo. Eu era só uma garotinha e minha mãe ainda estava entre nós. Agora tudo que eu queria era que houvesse alguém conhecido para entrar pela porta e perguntar o que estava acontecendo. O medo aninhou-me em seus braços e sufocou-me os sentidos. Para aquele homem, a crueldade falara mais alto. Não fora suficiente esquartejar a dignidade da filha ou dar mais uma chance ao pai. Simplesmente, disparou contra a única parte que mantinha minha historia viva, colocando um fim doloroso na existência. O corpo de meu pai jazia no mesmo canto do qual assistira o drama, pressionado contra os armários em baixo da pia. O sangue pintara-lhe a roupa como se tivesse sido mergulhada num balde de tinta vermelha, e seu rosto carregava uma expressão nauseante. O assassino cuspiu algumas palavras e desapareceu na penumbra da noite, cambaleando ao seu carro velho e perdendo-se na estradinha de terra deserta.

Eu deveria acordar neste momento. Tudo poderia ter sido apenas um pesadelo. Entretanto, bastavam alguns beliscões para ter certeza: eu estava sozinha, meu sangue escasseava cada vez mais e não havia ajuda por perto. Por sorte –mas prefiro acreditar um pouco em Deus- tive forças para arrastar-me até o telefone e discar o primeiro numero que vi. Uma voz sonâmbula atendeu, e minha rouquidão chorosa pediu ajuda. O aparelho fez-se imensamente pesado para minhas mãos, minha pressão caiu, a vista embaralhou.

Desmaiei ali mesmo.[...]"

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